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Três Poderes
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Entrevista | Ministra Maria Elizabeth Rocha

Zelando pela hierarquia e disciplina nas Forças Armadas

Marcelo Chaves

03/06/2025 10h16

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Foto: Odair Amâncio

A entrevistada da semana na Coluna Três Poderes é a presidente do Superior Tribunal Militar (STM), ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha. Ela recebeu o Jornal de Brasília em seu gabinete na capital federal. Mineira de Belo Horizonte, a magistrada integra o STM desde 2007, assumindo a presidência da corte militar este ano, função que exerceu anteriormente de 2014 a 2015. Elizabeth Rocha foi a primeira mulher nomeada para o cargo de ministra do STM e a primeira a assumir a presidência do tribunal em mais de 200 anos de existência, fazendo história. Em sua carreira, a magistrada também atuou na Advocacia-Geral da União (AGU) entre 1985 e 2007, na carreira de procuradora federal, além de exercer diferentes cargos de assessoria jurídica na istração pública federal, sempre com muito êxito e reconhecimento.

O STM existe desde o Império e a senhora foi a primeira mulher a presidi-lo. Como a enxerga esse marco pessoal e institucional?

Sinto-me profundamente honrada em ser a primeira mulher a presidir esta Corte bicentenária, que integra uma Justiça Especializada ainda pouco conhecida pela maioria dos brasileiros. Encaro essa conquista não apenas como um marco pessoal, mas como o resultado de uma luta coletiva e histórica de muitas mulheres que, ao longo do tempo, enfrentaram dor e sofrimento para abrir caminhos como este. Espero continuar pavimentando essa trilha, tornando-a menos árdua para outras mulheres que desejam ocupar espaços de poder. Mas sei que a luta é contínua e precisa ser permanente.

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Foto: Odair Amâncio

A Justiça Militar ainda é pouco conhecida do grande público. O que a senhora acredita que precisa ser melhor compreendido sobre a função e relevância do tribunal?

De fato, nossa Justiça é pouco conhecida, até por seu caráter altamente especializado. Atende principalmente aos militares das Forças Armadas, que somam cerca de 300 mil integrantes. Mas isso não diminui sua relevância. A Justiça Militar da União é responsável por zelar pela hierarquia e disciplina nas Forças Armadas — instituições que detêm o monopólio da força em nome do Estado. Por isso, desvios de conduta devem ser rigorosamente apurados. Um Exército indisciplinado é um risco à democracia, como se viu na tentativa de golpe de 8 de janeiro. A especialização e a celeridade do nosso sistema são essenciais para preservar a integridade institucional das Forças Armadas e, por consequência, a estabilidade do Estado Democrático de Direito.

Houve algum julgamento, decisão ou momento específico durante a sua gestão que a tocou de forma especial?

Ao longo dos meus 18 anos no Tribunal, desde 2007, participei de inúmeros julgamentos marcantes. Mas um dos mais emblemáticos foi o caso do assassinato do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo. Proferi um voto duro, com penas superiores a 30 anos para o tenente e o sargento, e acima de 20 anos para os soldados envolvidos. Busquei fazer justiça às famílias das vítimas. Infelizmente, o entendimento da maioria da Corte foi diverso: as penas foram reduzidas para até três anos e seis meses, por entender que a morte do catador foi culposa, sem intenção, e os oito militares foram absolvidos no caso da morte do músico, sob o argumento de que não era possível identificar de onde partiu o tiro fatal.

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Foto: Odair Amâncio

Que desafios silenciosos, por vezes não ditos, a senhora enfrentou como mulher em um ambiente tão tradicional?

Durante muitos anos, mesmo com votos frequentemente divergentes, garantistas e progressistas, nunca enfrentei resistência declarada. Mas isso mudou na eleição para a presidência do Tribunal, no ano ado. Esperei quase 18 anos pela minha vez, seguindo a tradição da antiguidade, mas alguns ministros romperam essa prática, articulando uma candidatura masculina. Foi uma eleição apertada, decidida pelo meu próprio voto. E naquele momento, percebi que eu não votava apenas em mim: votava por todas as mulheres.

Que mensagem a senhora deixaria para os jovens que pensam em seguir carreira na magistratura, especialmente na Justiça Militar?

Estudem, dediquem-se e, sobretudo, sejam fortes. Ainda vivemos em uma sociedade patriarcal, que impõe barreiras duras à ascensão profissional das mulheres. Nas primeiras instâncias, onde o o é por concurso público, o número de mulheres é expressivo, muitas vezes igual ou superior ao de homens. Mas, nas instâncias superiores, onde as escolhas são majoritariamente políticas, a representatividade feminina despenca. Recentemente, o presidente Lula indicou um homem para a vaga da ministra Assusete Magalhães no STJ, mesmo havendo mulheres entre os nomes das listas tríplices. O STJ tem 33 ministros; apenas cinco são mulheres, o que representa 16,12% — abaixo, inclusive, dos já baixos 38% da presença feminina no Judiciário, segundo o relatório Justiça em Números.

O STM vive hoje um novo contexto institucional, com as Forças Armadas mais expostas ao debate público. Qual deve ser o papel da Justiça Militar nesse cenário? Ela está preparada para lidar com essa visibilidade?

O papel da Justiça Militar da União permanece o mesmo que exerce há 217 anos: julgar, com celeridade e rigor, os crimes militares definidos em lei. O STM é o mais antigo tribunal do país, em funcionamento ininterrupto desde 1808, testemunha de toda a história institucional brasileira. O sistema disciplinar das Forças Armadas é extremamente rigoroso — muito diferente, por exemplo, das polícias militares estaduais. Não é comum vermos militares das Forças Armadas envolvidos em grupos de extermínio ou em organizações criminosas. Isso ocorre porque, além dos regulamentos disciplinares internos, os crimes são rapidamente encaminhados à Justiça Militar, que julga com presteza. Um simples furto ou o uso de entorpecentes, por exemplo, pode comprometer gravemente a hierarquia e a disciplina — pilares das Forças Armadas.

Casos envolvendo militares em crimes comuns ou em situações fora da caserna têm gerado discussões sobre a competência da Justiça Militar. A senhora acredita que é hora de rever esse alcance?

Quem discute isso não conhece o Direito Militar e, muito menos, está afeito às peculiaridades da Justiça Militar das Forças Armadas — instituições seculares e permanentes, de especial importância para qualquer nação soberana. Nossos magistrados de primeiro grau são juízes federais de carreira, concursados, e em nada devem, em termos de competência e conhecimento, a qualquer juiz federal do país. São eles quem julgam os civis que cometem crimes militares — por exemplo: Um criminoso que invade um quartel e furta granadas, armas e munições. Esses civis são julgados pelos juízes federais da Justiça Militar. Por outro lado, temos o Conselho de Justiça, formado pelo juiz federal e por quatro militares com patentes superiores à do réu, responsável por julgar os militares que cometem crimes militares. Essa composição mista é chamada de escabinato e traz o conhecimento jurídico do juiz togado e o conhecimento da caserna dos militares que fazem parte do conselho julgador, com vivência dentro dos quartéis. A Justiça Militar no Brasil é uma das mais modernas do mundo, inserida no Poder Judiciário desde 1937 — diferentemente daquelas cortes marciais, comuns em vários países, em que o julgador é o próprio comandante dos militares e os tribunais fazem parte de organismos das próprias Forças Armadas. O Brasil é elogiado e referência quando se trata de Justiça Militar.

Como a senhora vê o desafio de manter a independência da Justiça Militar em um país ainda tão politicamente polarizado, inclusive dentro das próprias corporações?

A polarização política é um mal que afeta toda a sociedade, inclusive instituições — afinal, elas são formadas por pessoas. No entanto, a independência da Justiça Militar nunca esteve em xeque. Nossos ministros não têm qualquer subordinação aos comandos das Forças Armadas. São magistrados com status constitucional, indicados pelo Presidente da República e sabatinados pelo Senado Federal, exatamente como nos demais tribunais superiores. A Justiça Militar é uma instituição forte, comprometida com a democracia e com a Constituição. Acredito que continuará exercendo sua missão de forma técnica, independente e imune a pressões políticas.

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